No cenário atual, em que a tecnologia se entrelaça cada vez mais com nossas vidas, surge uma indagação crucial: as telas são mocinhas ou vilãs no desenvolvimento das crianças? Este é o questionamento central da 2ª Semana de Foniatria, um evento de importância ímpar que acontecerá entre os dias 16 e 20 de outubro de 2023.
A foniatria, área dedicada ao estudo da comunicação humana, lança seu olhar crítico sobre um tema contemporâneo e que afeta diretamente a formação de nossas futuras gerações. Afinal, as telas, que incluem celulares, tablets, notebooks e televisões, tornaram-se protagonistas na vida de crianças, especialmente durante e após a pandemia. Mas o que essa convivência intensa com as telas significa para o desenvolvimento infantil?
Para explorar essa questão complexa, o Portal VoxOtorrino teve a oportunidade de entrevistar três renomados especialistas na área de foniatria, que coordenam a campanha deste ano: Dra. Mônica Guerra, Dr. Gilberto Bolivar Ferlin Filho e Dra. Vanessa Magosso Franchi. Suas perspectivas e conhecimentos enriquecedores serão compartilhados ao longo deste artigo, fornecendo insights valiosos sobre os prós e contras da relação entre as telas e o desenvolvimento infantil.
O debate que segue visa não apenas esclarecer dúvidas, mas também empoderar pais, cuidadores e profissionais de saúde com informações fundamentais para garantir um crescimento saudável e equilibrado para as crianças. Afinal, o futuro delas é moldado pelas escolhas que fazemos hoje. Vamos, juntos, explorar esse universo de conhecimento na 2ª Semana de Foniatria, sob o slogan provocativo: “Telas – mocinhas ou vilãs?”
Entrevista: Dra. Mônica Guerra, Dr. Gilberto Bolivar Ferlin Filho e Dra. Vanessa Magosso Franchi
As telas e os primeiros anos de vida das crianças
[Portal VoxOtorrino] Como a exposição excessiva a telas impacta o desenvolvimento da linguagem e cognição em crianças, especialmente nos primeiros anos de vida?
[Dra. Mônica Guerra] Nos últimos anos, tem havido um debate, tanto no meio científico quanto nas mídias sociais, sobre o uso excessivo de telas por crianças e seu impacto no desenvolvimento infantil. Esse debate é particularmente relevante quando se trata de crianças pequenas, pois o acesso e consumo de mídias eletrônicas têm crescido significativamente na infância. A quantidade de tempo que as crianças passam diante das telas está tendo um impacto substancial em seu comportamento, resultando em aumento do sedentarismo, comportamento passivo e prejuízo na linguagem infantil, como o atraso na aquisição de fala e menores habilidades na formação do vocabulário e de frases. Esse tempo deveria ser mais bem aproveitado para atividades como brincadeiras, interações sociais, aprendizado de fala e linguagem por meio de diálogos com pais, membros da família e amigos, bem como a participação em atividades ao ar livre e/ou esportivas.
Esses momentos são de extrema importância para o desenvolvimento das habilidades de linguagem e cognitivas, bem como habilidades motoras finas e grossas, além das sociais. Essa preocupação é compartilhada por instituições renomadas, como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Academia Americana de Pediatria (AAP) e a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), que enfatizam a necessidade de equilibrar o tempo gasto em frente às telas com atividades que promovam um desenvolvimento saudável e integral das crianças. Para as pequenas, a recomendação é de zero exposição às telas até os 2 ou 3 anos de idade. A partir daí, até cerca de 6 anos, é aconselhável o uso de conteúdo de alta qualidade, sempre acompanhado por um adulto. A partir dos 6 anos de idade, é importante estabelecer limites consistentes, garantindo tempo suficiente para outras atividades essenciais ao desenvolvimento.
Quais são os efeitos da exposição constante a telas no sono e comportamento das crianças?
[Dra. Mônica] A exposição prolongada e o horário de uso das telas têm efeitos negativos no sono e comportamento das crianças. Muitos estudos demonstram que a luz azul, na faixa das ondas emitidas por celulares, tablets, computadores e televisões, pode reduzir a produção de melatonina no cérebro, prejudicando a qualidade do sono e sua indução, resultando em um sono de pior qualidade e menor duração. A melatonina é um hormônio naturalmente produzido pelo corpo, especialmente durante a noite, e desempenha um papel crucial na regulação do ciclo de sono-vigília.
Dormir mal e em menor quantidade pode afetar o comportamento das crianças, principalmente no ambiente escolar, levando a problemas de memória e atenção, que são essenciais para o aprendizado de novas informações e, consequentemente, diminuindo o desempenho escolar. Além disso, isso pode estar associado a transtornos de atenção e hiperatividade.
Como os pais podem equilibrar o uso de telas com atividades físicas e interações sociais saudáveis para seus filhos?
[Dra. Mônica] Os pais desempenham um papel crucial na busca pelo equilíbrio entre o uso de telas e a promoção de atividades físicas e interações sociais saudáveis para seus filhos. O tempo que a criança passa brincando, interagindo com os pais ou amigos e praticando esportes direcionados, desempenha um papel fundamental no desenvolvimento físico, na linguagem e no cognitivo infantil. Esses hábitos são moldados desde cedo pela família e têm um impacto significativo no futuro das crianças.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) publica recomendações e diretrizes desde 2010, abordando a importância da atividade física para crianças saudáveis com menos de 5 anos de idade. Elas estipulam o tempo, a intensidade (de leve a vigorosa) e a qualidade das atividades ao longo do dia.
Para crianças com até 2 anos de idade, são recomendados pelo menos 180 minutos de atividades físicas variadas durante o dia, evitando que fiquem contidas por mais de 1 hora em carrinhos, cadeirões ou cercadinhos. Além disso, é importante envolvê-las em atividades como brincadeiras, leituras e contação de histórias e garantir de 11 a 14 horas de sono de boa qualidade, incluindo a soneca da tarde.
A partir dos 2 até os 5 anos, as crianças precisam de pelo menos 180 minutos de atividades físicas durante o dia, com pelo menos 60 minutos de atividades de moderada à vigorosa intensidade. Também é fundamental envolvê-las em práticas lúdicas que estimulem a interação social, como brincadeiras, contação de histórias, passeios, andar de bicicleta, correr, leitura, entre outras. Nessa faixa etária, o sono adequado é de 10 a 13 horas.
Portanto, promover a atividade física desde cedo ajuda a prevenir problemas relacionados ao uso excessivo de telas, garantindo um equilíbrio saudável entre o tempo de tela e as interações físicas e sociais essenciais para o crescimento e o desenvolvimento infantil da saúde no futuro.
Que conselhos você daria aos pais que desejam promover o desenvolvimento da linguagem e cognição de seus filhos, minimizando os riscos associados ao uso de telas?
[Dra. Mônica] Os pais devem direcionar o tempo das crianças para atividades que promovam um desenvolvimento infantil saudável, com destaque para a promoção de atividades interativas e educacionais que não envolvam o uso de telas eletrônicas.
Isso inclui as brincadeiras de faz de conta, nas quais a criança interage com personagens, aprimorando suas habilidades linguísticas e cognitivas, além de explorar diferentes papéis por meio da imaginação, permitindo-lhes experimentar diversas ações do cotidiano.
Além disso, atividades construtivas, como montar quebra-cabeças e utilizar peças de encaixe tipo “Lego”, desenhar e pintar com materiais diversos, bem como brincar em parquinhos, brinquedotecas e quintais, são fundamentais para o desenvolvimento das habilidades motoras finas e grossas das crianças. Jogos de mesa e atividades de leitura também promovem momentos significativos de convívio em família, ao mesmo tempo que estimulam o raciocínio, auxiliam na estruturação da linguagem, aprimoram a função narrativa e introduzem novos conceitos e conhecimentos.
É de extrema importância ressaltar que, em crianças pequenas, a recomendação é evitar completamente o uso de telas eletrônicas. A partir dos 3 anos de idade, é aconselhável introduzir programas educacionais que podem ser benéficos para o desenvolvimento da linguagem. Esses programas devem incluir narrativas interativas e adequadas à idade da criança, permitindo que ela responda verbalmente. É fundamental escolher opções que estimulem a interação com outras pessoas, bem como a criatividade e a curiosidade das crianças. Exemplos de programas que atendem a esses critérios incluem “Dora, a Aventureira”, “Vila Sésamo”, “Show da Luna”, “Peixonauta”, “Doki”, “Cocoricó” e “Hora do Justin”.
Além disso, os pais devem estabelecer uma rotina de atividades diárias, alimentação saudável e horário adequado para o sono em um ambiente propício ao descanso, com quartos escuros e sem o uso de telas eletrônicas.
Portanto, os pais desempenham um papel fundamental na promoção do desenvolvimento saudável de seus filhos, ao proporcionar atividades apropriadas para a idade e evitar o uso excessivo de telas, especialmente para crianças pequenas.
A exposição a telas e o desenvolvimento de crianças na idade escolar (até os 13 anos de idade)
Quais são os principais desafios que os pais enfrentam ao tentar limitar o tempo de tela de seus filhos na faixa etária pré-escolar?
[Dr. Gilberto Bolivar Ferlin Filho] Entre os muitos desafios para quem decide limitar o tempo em telas por seus filhos, podemos citar a dificuldade em dar atenção às crianças. Ter tempo para interagir e “ensinar sem querer”, abrir “espaço na agenda” e diminuir o próprio uso de telas podem ser grandes desafios.
Que estratégias podem ser adotadas para incentivar atividades físicas e sociais entre crianças que estão cada vez mais envolvidas com dispositivos eletrônicos?
[Dr. Gilberto] O convívio com pares da mesma idade na escola pode ser pensado como estratégia, mas dificilmente funcionará bem se, fora desse contexto, a criança não recebe atenção do cuidador que lhe apresenta o mundo físico e social onde nasceu.
Brincadeiras com objetos concretos, que estimulem a imaginação e a criatividade, tanto dentro como fora de casa, ou jogos com regras que possam ser realizados com seus pares de mesma idade são de grande ajuda, mas sempre supervisionados. Individualmente, quando estiverem maiores, podemos propor desenhos, leituras etc.
Como os pais podem selecionar programas eletrônicos adequados e supervisionar o conteúdo que seus filhos consomem nas telas?
[Dr. Gilberto] A melhor estratégia é estar junto aos filhos e acompanhar em tempo real o que as crianças assistem, fazem e pelo que se interessam.
Um bom paralelo seria pensar a partir de qual idade seria razoável deixar uma criança desacompanhada durante um dia inteiro, ou apenas por 2 horas que fosse, em um grande parque de diversões?
Os supervisores de conteúdo podem ter sua utilidade, mas, voltando ao paralelo, talvez servissem como as câmeras desse parque. Se acontecer algo com a criança, dificilmente será possível intervir a tempo de evitar potenciais danos.
Qual é a importância de estabelecer áreas em casa onde as telas não sejam permitidas, e como isso pode beneficiar o desenvolvimento das crianças?
[Dr. Gilberto] Essa pode ser uma estratégia interessante para todas as idades, pensando que somos regularmente seduzidos a usar telas. Nesses locais e horários, o não uso de telas tende a favorecer a interação inter-humana e entre pessoas e objetos físicos.
Interação com crianças depende de alguém para que aconteça. O adulto, no caso de crianças menores, representa o apresentador do mundo real, mundo que esta criança está começando a conhecer e no qual vai participar uma vida inteira. Nessa fase do desenvolvimento, são formadas e transformadas milhões de sinapses cerebrais, tanto sensoriais, que vão permitir à criança ouvir, ver e sentir o mundo ao seu redor, quanto motoras, que possibilitarão sua interação com esse ambiente. Dessa interação, depende a modelagem da comunicação do indivíduo durante a vida.
Adolescência e os riscos envolvendo a exposição a telas
Como o uso de telas impacta o desenvolvimento cognitivo e emocional de adolescentes, considerando as mudanças biológicas e sociais nessa fase?
[Dra. Vanessa Magosso Franchi] A adolescência é uma fase de grandes mudanças, não apenas hormonais, mas também cerebrais! Durante todo este período, ocorre uma grande remodelação cerebral responsável por mudanças relacionadas à socialização e necessidade de busca por novidades que são próprias dessa fase da vida.
Nesta etapa, há uma intensa mudança e ajustes nos circuitos cerebrais relacionados ao sistema de recompensa cerebral, que serão mais bem realizados se o adolescente tiver um estilo de vida saudável. O uso excessivo de telas nessa idade, por meio de redes sociais ou jogos eletrônicos, pode guiar os ajustes no sistema de recompensa do cérebro adolescente, de modo a favorecer o desenvolvimento de vícios em jogos eletrônicos e até se tornar gatilho para a ocorrência de transtornos psíquicos mais graves.
Quais são os principais riscos associados ao uso excessivo de mídias sociais e videogames por adolescentes?
[Dra. Vanessa] Os adolescentes usam telas em seu dia a dia com diversas finalidades, para realizar trabalhos e estudos escolares, mas também como distração para livrá-los do tédio e como forma de interação com seus pares. No entanto, seu uso esporádico pode facilmente evoluir para uma utilização mais frequente, levando a problemas no desempenho escolar, diminuição ou ausência de atividade física e de momentos de lazer em família, má qualidade do sono, entre outros fatores. Nessa fase da vida, o uso de telas pode ser mais difícil de controlar e se tornar excessivo com mais facilidade, justamente por conta das telas ativarem sistemas de recompensa cerebrais que estão amadurecendo durante a adolescência.
Qual é a relação entre o uso de telas e os transtornos do sono em adolescentes e como isso pode afetar seu desempenho escolar?
[Dra. Vanessa] O uso de telas antecedendo o sono pode reduzir a produção da melatonina cerebral, dificultando a indução do sono. Além disso, as telas são altamente estimulantes, podendo prejudicar a qualidade do sono.
Um sono de qualidade é fundamental para a manutenção da atenção durante o aprendizado, além de ajudar na retenção e consolidação do aprendizado escolar.
Como os pais podem servir como modelos positivos para seus filhos, promovendo um equilíbrio saudável entre o tempo de tela e outras atividades?
[Dra. Vanessa] É importante que os pais estimulem atividades físicas. Pais que praticam atividades físicas são exemplos para os seus filhos. A prática de esporte deve ser incentivada pela família.
Não utilizar telas durante as refeições também é uma ótima estratégia para estimular as conversas em família, tão importantes nessa fase da vida.
Quanto mais os pais utilizarem mídias eletrônicas, mais seus filhos estarão propensos a utilizá-las mais tarde na adolescência. Afinal, crianças aprendem muito imitando os adultos.
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